Hoje amanheci pensando que no dia em que eu morrer, porque sou poeta, as pessoas se movimentarão muito nesta incrível cidade de todos os meus amores e todos os meus desgostos. Imagino que farão um enorme enterro, com muitos carros, um caixão horrível de madeira pretensamente talhada, e criaturas meio pomposas, quiçá tristes, empurrarão a “bicicleta” lentamente, naquela coreografia de todas as procissões fúnebres, sempre para a frente, passo a passo, até o cemitério que Calixtinho deu dignidade e tornou habitável. Provavelmente alguém quererá fazer um discurso, exaltando minhas virtudes, minha inteligência, até a glória que eu serei para esta cidade. Um barato!... É isso: farão um enterro digno, homenageante, glorificante. Mas eu lá vou querer essa coisa preta e triste, essa lentidão, esse calor de flor machucada, esse cheiro de discos de embreagem esquentados, essas pessoas que, nessas ocasiões, falam “pelos cotovelos” – dos filhos, das empregadas, das butiques, dos bois, da crise, da podridão parda? E pode haver coisa mais cafona que discurso à beira do túmulo, mesmo que seja para um poeta?
Ah, não, pelo amor de Deus, não me façam isso! Quando eu morrer – prestem bem atenção – quero um caixão de tábuas simples e, mas, na madeira pura, levado pelas mãos de meus irmãos e de meus amigos até o carro fúnebre, que deverá ir rápido, no mínimo a 30 quilômetros por hora. E mais: quero que respeitem em mim todos os que morrem indigentes e vão no caminhão do lixo, todos os loucos soltados nas estradas para que morram atropelados, todos os meninos assassinados, todos os cachorros escurraçados e gatos violentados, todos os pássaros aprisionados e mortos e todas as árvores derrubadas e queimadas pela estupidez humana. Apenas no silêncio que toda morte exige, para poder ser em paz, façam tocar o 4º Movimento da “Nona Sinfonia” de Beethoven. E que ninguém chore. Não é para chorar! Quero que todo mundo saiba, ou aprenda comigo, que morrer é apenas a conclusão de um processo que se cumpre. E não falo no sentido de fim, acabou, não! Digo conclusão como algo dinamicamente maior, aquele ponto máximo de plenitude em que a vida ganha a sua dimensão mais real. E mais bonita, quem sabe. Pô gente, morrer não mata ninguém!
Valdelice Pinheiro
Professora de Filosofia da UESC
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