junho 05, 2009
CENTO E VINTE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA - (TRECHO DO LIVRO AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA DE EDUARDO GALEANO)
"Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países
especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca
do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder
desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar
e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. São muito mais altos os impostos que cobram os compradores do que os preços que recebem os vendedores; e no final das contas, como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, “falar de preços justos, atualmente, é um conceito medieval. Estamos em plena época da livre comercialização...” Quanto mais liberdade
se outorga aos negócios, mais cárceres se torna necessário construir para aqueles que sofrem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e carrascos não só funcionam para o mercado externo dominante; proporcionam também caudalosos mananciais de lucros que fluem dos empréstimos e inversões estrangeiras nos mercados internos dominados.
“Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas
não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões”, advertia, lá por 1913, o presidente norte-ameiricano Woodrow Wilson,
Ele estava certo: “Um país - dizia - é possuído e dominado pelo capital que nele se
tenha investido.” E tinha razão. Na caminhada, até perdemos o direito de chamarmo-nos
americanos, ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos
novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabelecerem nas costas de
Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós
habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebulosa
identificação.
É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos
dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (Há quatro séculos, já existiam dezesseis das vinte cidades latino-americanas mais populosas da atualidade.)
Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América
Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que
aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.
Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes - dominantes para dentro, dominadas de fora - é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga."
Presenteio a todos com este PEQUENO TRECHO do legado do Galeano, meu livro de cabeceira durante muitos anos, recomendo a todos, ele é UM DOS MAIORES ESCRITORES DA AMÉRICA LATINA, JORNALISTA, HISTORIADOR, que nos relata o que aconteceu com a força e a vida de quem sente a mesma dor, criando no leitor uma empatia e uma clareza indescritíveis.
BEBAMOS, BEBAMOS...
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