janeiro 28, 2011

O livro das ignorãças

Manuel de Barros

3a. Parte
MUNDO PEQUENO
Aromas de tomilho dementam cigarras.
SOMBRA-BOA
I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas .
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore .
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.
III
Retrato de um poste mal afincado ele era .
Sendo um vaqueiro entrementes; peão de campo.
No jeito comprido de estar em pé seu corpo fazia
três curvas no ar.
Usava um defeito de ave no lábio.
Desde o vilarejo em que nasceu podia alcançar o
cheiro das árvores.
Esse Malafincado:
Sempre nos pareceu feito de restos.
Ventos o amontoavam como folhas.
Foi sempre convidado a fazer parte de arrebóis.
(Sintomático de tordos era o seu amanhecer.)
Falava em via de hinos -
Mas eram coisas desnobres como intestinos de moscas
que se mexiam por dentro de suas palavras.
Gostava de desnomear:
Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz
esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de
uma gruta, chamou: desenhos de uma voz.
Penso que fosse um escorço de poeta.
IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracoes da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha ",
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam
cigarras. " Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em língua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas :
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.
V
Esses lagartos curimpãpãs têm índole tropical.
Tornam-se no mês de agosto amortecidos e idiotas
Ao ponto que se deixam passar por cima como pedras.
Ao ponto que se deixam atravessar por caminhões.
Aparecem de sempre esses lagartos encostados em
muros decadentes -
Onde se criam devassos.
Bem assim por exemplo:
Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpãpã assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu debaixo de um tronco .
(Tem um tipo de árvores que dão pros lagartos)
Alguns atravessam invernos que os pássaros morrem.
Borboletas translúcidas quedam estancadas no tronco
das árvores -
Se enxergam por perto os curimpãpãs.
Mas todos sabemos que esses lagartos curimpãpãs são
pouco favorecidos de horizontes.
Enxergam tão pequeno que às vezes pensam que a
gente é árvore e nem se mexem.
Nos barrancos há riscos de suas manguaras.
E se estão em aflição de espírito - combustam!
(Essas notícias foram colhidas por volta de 1944,
entre os índios chiquitanos, na Bolívia.)
Águas estavam iniciando rãs.
VI
De primeiro as coisas só davam aspecto
Não davam idéias.
A língua era incorporante.
Mulheres não tinham caminho de criança sair
Era só concha. *
Depois é que fizeram o vaso da mulher com uma
abertura de 5 centímetros mais ou menos
(E conforme o uso aumentava.)
Ao vaso da mulher passou-se mais tarde a chamar
com lítera elegância de urna consolata.
Esse nome não tinha nenhuma ciência brivante
Só que se pôs a provocar incêndio a dois .
Vindo ao vulgar mais tarde àquele vaso se deu
o nome de cona
Que, afinal das contas, não passava de concha mesmo.
__________
* Era só concha: está nas Lendas em Nheengatu e Português, na Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Vol.154.
VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
-Gostar de fazer defeitos na frase e muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas. . .
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios , não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.
VII
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
VIII
Tudo o que se há de dizer aqui sobre capivaras,
nem as mentiras podem ser comprovadas. Se esfregam
nas árvores de tarde antes do amor. Se amam sem
ocupar beijos. Excitadas se femeiam por baixo dos
balseiros. E ali se aleluiam. O cisco da raízes
aquáticas e a bosta dos passarinhos se acumulam
no lombo das capivaras. Dali se desprende ao meio
dia forte calor de ordumes larvais . No lombo se
criam mosquitos monarcas, daqueles de exposição,
que furam até vidros e abaixam pratos de balança.
É vezo de dizer-se então que capivara é um bicho
insetoso. Porquanto favorecem a estima dos pássaros,
sobretudo dos bentevis que lhes almoçam larvas
ao lombo. Coisa que todo mundo gosta, tirante as
capivaras, é de flor. Pelo que já não entendo, existem
razões particulares ou individuais que expliquem
tal desgosto das capivaras por flor? Todas
guardam água no olho.
IX
Andaleço era o navio Etrúria. Se achava.
Ele tinha incumbências para água.
Crescera que nem craca nos cascos dos navios.
Se houvesse de escolher entre uma coisa e outra
ficasse deitado sobre nenhuma.
A doce independência de não escolher!
(Se a palavra é a posse da coisa nomeada, o
Etrúria era ele mesmo, o Andaleço.)
À noite caçava seu de-comer nas grotas.
O que jantava eram bundas de gafanhoto com mel.
Estóreas de Andaleço fascinavam os meninos.
O irmão-preto falou: Etrúria deve ser um
lugar sem melancia !
X
O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que primeiro
em água e luz. Depois árvore. Depois lagartixas.
Apareceu um homem na beira do rio. Apareceu uma ave
na beira do rio. Apareceu a concha. E o mar estava
na concha. A pedra foi descoberta por um índio. O
índio fez fósforo da pedra e inventou o fogo pra
gente fazer bóia. Um menino escutava o verme de uma
planta, que era pardo. Sonhava-se muito com pererecas
e com mulheres. As moscas davam flor em março. Depois
encontramos com a alma da chuva que vinha do lado
da Bolívia - e demos no pé.
(Rogaciano era índio guató e me contou essa cosmologia.)
XI
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?).
XII
Estou atravessando um período de árvore.
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu
olho tem escórias de árvore.
O chão deseja meu olho vazado pra fazer parte do cisco
que se acumula debaixo das árvores.
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu olho
possui um coisário de nadeiras.
O chão tem gula de meu olho pelo mesmo motivo que
ele tem gula por pregos por latas por folhas.
A gula do chão vai comer o meu olho.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
XIII
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus
loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore.
Me arrastei por beiradas de muros cariados desde
Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz de
La Sierra, na Bolívia.
Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o poeta
Cesar Vallejo), Orellana e Mocomonco - no Peru.
Achava que a partir de ser inseto o homem poderia
entender melhor a metafísica.
Eu precisava de ficar pregado nas coisas vegetalmente e
achar o que não procurava.
Naqueles relentos de pedra e lagartos, gostava de
conversar com idiotas de estrada e maluquinhos de
mosca.
Caminhei sobre grotas e lajes de urubus.
Vi outonos mantidos por cigarras.
Vi lamas fascinando borboletas.
E aquelas permanências nos relentos faziam-me
alcançar os deslimites do Ser.
Meu verbo adquiriu espessura de gosma.
Fui adotado em lodo .
Já se viam vestígios de mim nos lagartos.
Todas as minhas palavras já estavam consagradas de
pedras.
Dobravam-se lírios para os meus tropos.
Penso que essa viagem me socorreu a pássaros.
Não era mais a denúncia das palavras que me importava
mas a parte selvagem delas, os seus refolhos, as
suas entraduras.
Foi então que comecei a lecionar andorinhas.
Fonte: cinepalhastro.blogspot.com