março 05, 2010

CRÔNICA DO MEU ENTERRO

Hoje amanheci pensando que no dia em que eu morrer, porque sou poeta, as pessoas se movimentarão muito nesta incrível cidade de todos os meus amores e todos os meus desgostos. Imagino que farão um enorme enterro, com muitos carros, um caixão horrível de madeira pretensamente talhada, e criaturas meio pomposas, quiçá tristes, empurrarão a “bicicleta” lentamente, naquela coreografia de todas as procissões fúnebres, sempre para a frente, passo a passo, até o cemitério que Calixtinho deu dignidade e tornou habitável. Provavelmente alguém quererá fazer um discurso, exaltando minhas virtudes, minha inteligência, até a glória que eu serei para esta cidade. Um barato!... É isso: farão um enterro digno, homenageante, glorificante. Mas eu lá vou querer essa coisa preta e triste, essa lentidão, esse calor de flor machucada, esse cheiro de discos de embreagem esquentados, essas pessoas que, nessas ocasiões, falam “pelos cotovelos” – dos filhos, das empregadas, das butiques, dos bois, da crise, da podridão parda? E pode haver coisa mais cafona que discurso à beira do túmulo, mesmo que seja para um poeta?
Ah, não, pelo amor de Deus, não me façam isso! Quando eu morrer – prestem bem atenção – quero um caixão de tábuas simples e, mas, na madeira pura, levado pelas mãos de meus irmãos e de meus amigos até o carro fúnebre, que deverá ir rápido, no mínimo a 30 quilômetros por hora. E mais: quero que respeitem em mim todos os que morrem indigentes e vão no caminhão do lixo, todos os loucos soltados nas estradas para que morram atropelados, todos os meninos assassinados, todos os cachorros escurraçados e gatos violentados, todos os pássaros aprisionados e mortos e todas as árvores derrubadas e queimadas pela estupidez humana. Apenas no silêncio que toda morte exige, para poder ser em paz, façam tocar o 4º Movimento da “Nona Sinfonia” de Beethoven. E que ninguém chore. Não é para chorar! Quero que todo mundo saiba, ou aprenda comigo, que morrer é apenas a conclusão de um processo que se cumpre. E não falo no sentido de fim, acabou, não! Digo conclusão como algo dinamicamente maior, aquele ponto máximo de plenitude em que a vida ganha a sua dimensão mais real. E mais bonita, quem sabe. Pô gente, morrer não mata ninguém!

Valdelice Pinheiro
Professora de Filosofia da UESC

A Mulher e seu papel na transformação da sociedade

Duas da madrugada e eu aqui insone, pensativa, angustiada, ansiosa...preocupada com tudo: preocupada com o curso de direito que exige muito mas nem sempre dá à altura do que solicita; preocupada com os filhotes, lindos (mãe corujona), rebeldes, questionadores, adolescentes, o mundo a seus pés! Preocupada com duas irmãs e seis irmãos - egos fortíssimos, gente muito brava, muito inteligente e muito briguenta, assim, como eu... rsrsrsrsrsr, como administrar dívidas, irmãos e irmãs, filhos, curso, trabalho? e mais o lazer, a tv, o computer,os textos mil que tenho para ler... sinestesicamente, só ponho a mão na folha e já senti e entendi tudo que está escrito. Crê nessa possibilidade? não duvido de nada mais. Enfim, mulher do século XXI, "independente" - tenho tantas necessidades e carências!, emancipada - a duras custas e fortes penas, com muita luta e debate com os que não me aceitam "eu pensante e ativa", trabalhadora assalariada - que vergonha não pagarem às mulheres igualitariamente quando elas fazem o mesmo que os do sexo oposto, "livre" - a quantas horas de quantos dias e meses e anos estou correndo... "não sei por onde vou, não sei pra onde vou, só sei que não vou por aí"... onde queremos chegar com tanto corre-corre? Tudo ficou mais importante que a nossa liberdade, nossa família, nossa satisfação pessoal, nosso amor... qualquer porcaria mercantilizada vale mais que todos nós: cala a boca , menino, tô assistindo o jornal! hora da novela, silêncio! quieta, não tá vendo que tô assistindo ao filme? e quando se trata do computador a coisa é bem pior, porque passamos a dar mais atenção aos virtuais que aos reais, que estão ali do nosso lado, precisando do nosso amor, do nosso carinho, do nosso mais simples olhar, para saber que ainda o amamos! Ai minha maravilhosa vida de mulher é uma terrível escravidão tão ruim quanto a anterior, quando eu tinha que cuidar de toda a casa, andar limpinha e nunca dizer não ao meu senhor. E os trezentos e cinquenta anos de escravidão? quando imagino o escravo amarrado no pelourinho, com a bunda de fora, exposta aos transeuntes, amarrado pela cintura, acima das nádegas e abaixo delas, com o feitor do lado a chicoteá-lo, preciso confessar, o gosto do sangue vem à minha boca. Ah, mulheres africanas, mãe de tantas lutas e revoluções, eu sinto a dor e a vergonha de cada estupro, a revolta por cada submissão, o cheiro da indignação por cada açoite e as marcas do tronco ainda doem em minhas juntas, pés e mãos! Trouxemos inscrita no DNA toda essa história, desde os campos livres da África, passando pelos porões dos tumbeiros, os mercados de escravos, os séculos de privações e de senzala, a abolição que não indenizou ninguém e oficializou a marginalidade e o preconceito contra os descendentes dos africanos no meu país! e essa torrente de sentimentos, pensamentos, idéias, lembranças atávicas registradas no sangue dos avós, dos quais herdei o amor à natureza, o espírito guerreiro e a sabedoria de velhos feiticeiros da africanidade, mãe de todos os seres humanos, a velha África, de onde viemos todos... e ver-te sendo assim destruída por doenças importadas por nações ricas e ambiciosas, que desejam te matar para ficar com tudo que é teu! Algozes terríveis que há séculos tecem a trama e a teia nefasta do destruidor... como que numa enxurrada de fortes emoções e lembranças, comovida com a chave do portal que abre tantas memórias, imagens, cheiros, cores, sabores, sigo pensando, refletindo sobre esse Ser Mulher neste mundo em que vivo, onde ainda se espera de mim que fale baixo, peça, implore, dê incondicionalmente, obedeça, favoreça, renuncie, aceite, cale, silencie e morra, se preciso for, pela manutenção do status quo dos poderosos e tiranos, que, como já dizia o Chaplin "oprimem o povo e se liberam"!!! São tantas mulheres, não posso falar de todas assim numa só sentada... preciso de mais páginas, mais tempo, mais tinta, papel, caneta, lápis ,tecnologias como computador e afins, preciso de muitas madrugadas, porque ainda devo pensar a prostituta, la putana retada, as índias mortas com seus filhos nos braços, inocentes, sem compreender tamanha maldade maldita amaldiçoada, torpe, ilícita, voraz, sedenta de sangue... aliás, sedenta de ouro e prata e capaz de matar uma nação inteira por causa disto! Deus, apague esta idéia, Deus, você não poderia ter sido mais infeliz nesta criação! cada bisa nossa que regou a terra com o próprio sangue, cada corpo aberto ao meio pela insanidade do colonizador... clama na minha voz, chora nos meus olhos, têm pesar no meu coração e sinto que eles perguntam: por quê? por quê? Ser mulher! sou mulher! "Todos tiveram pai, todos tiveram mãe, e eu que não principio nem acabo, nasci do amor que há entre Deus e o Diabo" Ah, mulheres enterradas vivas nas paredes de suas próprias casas, mulheres aprisionadas nos porões, com oito portas separando-as do mundo por mais de 20 anos, mulheres espancadas e mortas por seus maridos, mulheres que viveram toda a vida aprisionadas no lar, escravas dos seus companheiros... dionisíacos, baconianos!
ah madrugada forte, mulheres proibidas de aprender a ler, proibidas de estudar, mulheres que fizeram e aconteceram e os maridos tomaram seus feitos para si...mulheres de Atenas, sem gosto ou vontade, sem sonhos, só presságios, como nos lembra Chico Buarque e as de Esparta, que tinham seus filhos arrancados do seu colo aos sete anos de idade. Como será que se sentiram as mães das trinta mil crianças que partiram da Europa para conquistar Jerusalém? como será que se sentiram as mães das crianças que tiveram suas mãos arrancadas pelas máquinas da Revolução industrial? o que não passaram as mulheres com o advento do capitalismo? E a prima notte feudal? novamente o gosto de sangue me vem à boca... Agora somos até da Polícia! Por que temos que pegar em armas? Temos é que combater as armas. Abaixo as armas, abaixo a violência... Nossa emancipação tomou um rumo de competição com o homem no mundo que ele forjou. Temos é que sustentar idéias de uma nova ordem mundial, de uma nova concepção de mundo e não querer disputar no Mercado um posto similar... O que está posto como Real é ilusão, o que está posto como sonho é a mais doce e meiga utopia que devemos acalentar para que sejamos todos felizes, nossos filhos e filhas, nossos amigos e amigas, nossas vizinhas, nós mesmas. Precisamos garantir a existência de pessoas que se enternecem com as flores, um banho de mar, bichos, mato, selva, floresta, natureza... O urbanóide é patético, destruidor contumaz, louco, maníaco-depressivo, vivendo nesse frenesi que não o leva a lugar nenhum, mas sempre a última hospedeira o estará aguardando, para transformá-lo de novo em lama e pó...quisera podermos aproveitar mais e melhor a nossa passagem pelo Planeta, sentindo o calor tépido da terra, o cheiro das pedras, o vigor dos caules e a fragilidade milenar dos troncos das árvores. A servidão voluntária, de que nos fala Etiénne de La Boétie, ainda está presente na sociedade, é uma voluntariedade involuntária, porque por causa do ter que tanto aprendemos a querer e desejar, somos praticamente obrigados a aceitar todo o sistema econômico-financeiro-jurídico-político, que nos é imposto "goela a baixo" por aqueles que se adonaram de todos os bens, mantendo-nos reféns de nossas próprias ilusões. Depois eu escrevo mais. Meu espírito esvaiu-se e exauriu-se com esse turbilhão de emoções e pensamentos. Que a Mulher queira transformar a Sociedade Humana, e não disputar cada pedaço do seu quinhão, porque a gente só deve brigar por coisas que valem a pena e esse modelo que aí está de sociedade e de convivência humana precisa ser repensado e revolucionado com a máxima urgência, se é que queremos continuar residindo no Mundo Terra.
Diacui Pataxó