Carta escrita pelo soldado Augusto Júnior, que liderou a greve da polícia militar, em Ilhéus, no mês de fevereiro.

Augusto Júnior.

Na contramão do que faria a maioria das pessoas jogadas na prisão, me vi obrigado a refletir sobre esse lugar que aqui estou. Os efeitos que esperam e os efetivamente causados com a minha condução a esse lugar nefasto, onde não desejo que os meus piores inimigos passem, se é que os tenho. Nessas reflexões, cheguei a algumas conclusões, que por questões óbvias não esgotarei nessa carta. Qual o escopo genérico da prisão? Uns afirmam que essa serve para arrancar o “mal” do seio da sociedade, outros que é o meio para penalizar os que andam a margem da lei, haverá ainda os que dirão que essa serve para ressocializar o apenado.

Todas as assertivas acima podem até está correta, depende de quem as avalia, mas quero chamar atenção para a gravidade da prisão, ela é muito mais nociva quando deixa de ser gênero e passa a ser espécie, e sobre esse prisma quero refletir. A prisão militar do ponto de vista pragmático, ela difere muito da prisão genérica, é certo que a prisão militar não extirpa “o mal” da PM, pois muitos estão presos, tantos outros estiveram presos como os diretores da Aspra e os índices de violência policial só aumentam.


Muitos colegas de farda se não atentarem para minha reflexão, até poderão me condenar pela afirmativa ao final do parágrafo anterior, mas isso é um fato. Quero problematizar variáveis que elevam esses índices de violência policial, e certamente o militarismo é o principal mal responsável pela violência policial, senão vejamos. Durante os cursos de formação temos os melhores currículos que para os estudiosos que não vivem o dia-dia de uma unidade militar, pensam que a nossa Polícia “evoluiu” porque temos matérias curriculares, tais como sociologia, relações étnico-raciais e de gênero, disciplina na qual sou pós-graduado pela UESC e não me deram para lecionar, talvez por me considerarem um subversivo, uma pessoa que aguça a reflexão e que problematiza os conceitos prontos que vem nos manuais que devemos seguir. Temos até direitos humanos, olha só que lindo, aliás já dizia Caetano Veloso “NA BAHIA TUDO É LINDO,” menos a triste realidade da nossa PM.

Objetivamente falando, o que existe é uma celeuma que há 187 anos há na PM-BA e nas demais PMS pelo Brasil afora e que nunca conseguiram resolver se a sociedade civil organizada não participar de forma mais ativa desse debate. E sabem por que afirmo isso? Porque esse modelo arcaico de Polícia Militarizado, que, diga-se de passagem, que só existe no Brasil atende aos interesses da política, de uma elite econômica e que está no seio da corporação. Só para ter uma idéia, nesse presídio militar que o qual estou, há dezenas de PMS presos, todos classe sustentadora da pirâmide administrativa, a maior graduação é de Sargento. Será que tão-somente as praças trabalham na PM e por isso exclusivamente eles cometem “ÍLICITOS”? Perguntar não ofende e acho que na Bahia ainda não é crime, gato escaldado tem medo de água fria.

Como ia falando, essa celeuma arraigada nessa corporação chamada militarismo é o que há de mais nocivo a sociedade, vou mostrar por que: Somos considerados pelo nosso estatuto, uma categoria especial de trabalhadores, quem ouve o termo especial pensa logo que há algo de positivo nisso, ledo engano, senão vejamos: Por sermos especiais não possuímos direito a greve, a sindicalização, a filiação partidária (fora do âmbito do sufrágio universal) e tantos outros direitos que trabalhadores “comuns têm”. Lembrem-se, tudo isso por sermos militares. Nossa Constituição que rechaça esses direitos, contradizendo o princípio da isonomia, diz que o salário do PM deve ser pago em forma de subsídio, o que daria um provento mais digno de forma escalonada a todos, de modo que os comandantes não estariam submetidos à vontade do governo para receber determinadas gratificações.

Enquanto alguns dizem que a cadeia dói, eu digo que a cadeia me faz refletir mais.

Pasmem em outro absurdo que vou dissertar, para aqueles que pensam que a ditadura acabou no Brasil, estão equivocados, e olhem que não estou falando de governos totalitários que infestam a nossa política. Estou falando de um cara chamado CPM. Calma! Não é o nosso saudoso Colégio Romulo Galvão que se tornou o colégio da polícia militar convidando “os alunos problema” a se retirarem, como se fossem simples assim resolver os problemas da educação. Mas… Então, esse tal CPM é o Código Penal Militar, e tem seu parente, o CPPM, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR ambos do ano de 1969, estão respaldados, embasados, lastreados pelos Atos Institucionais números cinco e dezesseis, do tempo da ditadura. É possível falar que a ditadura acabou?

Voltando a questão da formação policial, o currículo é bom, as aulas e os módulos nem tanto, as práticas piores ainda, vejamos por que: Quando os novos soldados se apresentam os discursos são mais ou menos assim:

“Esqueçam tudo que vocês aprenderam lá fora”.

“Polícia não pode sorrir para civil folgado”.

“Vocês tem o direito a não ter direito, não reclamar do direito que possui e tem o direito a ficar calado!”

“Seus amigos agora serão outros”. E, tantas outras afirmações. Após isso, temos a temida semana de adaptação, sabe como é feita essa semana? Faxina nas unidades militares, muitas pressão psicológica para os recrutas desistirem e muita corrida com canções do tipo:

“Interrogatório, interrogatório, é muito bom de fazer, você pega o inimigo e quebra ele até dizer…”

Essa é a mistura perfeita, um monte de meninos e meninas, hoje em dia, graças a Deus com uma formação intelectual melhor e isso é o que tem modificado a PM, a maioria sem nenhuma relação com o militarismo. Eles passam quase 10 meses fazendo faxina nos batalhões tendo poucas aulas teóricas, que é importante, fazendo várias atividades físicas no sol escaldante, correndo o dia todo cantando músicas que incitam a violência contra a sociedade, ou seja, nossos familiares e amigos.

Essas canções são forma de manifestar as ações que deverão ser adotadas nos serviços, no dia- a- dia, esse é o problema, pois nessa mistura explosiva todos perdem. Principalmente a sociedade e as praças que geralmente que na maioria por falta de preparo técnico-profissional, são presos e levados para o presídio do batalhão de choque, sofrendo ele e a família.

Fiz um breve passeio pela história PM para compreendermos essa engrenagem chamada PMBA, que joga os seus trabalhadores em jaulas como se animais fossem. Os problemas não cessam, a coisa é muito mais grave do que parece, especialmente quando chegamos ao presídio militar. Retomo a discussão inicial sobre a função dos presídios e fico com a definição de Michel Foucault, na qual ele afirma que essas instituições utilizam “métodos que permitem o controle minucioso, das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade.” Apesar de está lendo Foucault e concordar muito com ele, quero dizer que em relação aos diretores da ASPRA, especialmente a minha pessoa, a prisão está surtindo efeito contrário e agora que a liberdade de mais ninguém está condicionada ao silêncio da minha fala, não falarei apenas, bradarei para que a sociedade organizada venha para a luta conosco, pois ela é a maior vítima de uma polícia-política.

Como ia dizendo o efeito da prisão em nós está sendo o contrário porque ela causa indignação, além de ser ilegal é imoral, ela não conseguiu nos docilizar e sim revigorar nossas energias para lutarmos ainda mais contra as injustiças, especialmente tantas que encontramos aqui no presídio. Com tudo isso, não quero que os meus amigos passem pelo arcabouço o qual estou. Aos meus queridos colegas, futuros operadores do direito, pensem, em uma pessoa que foi condenada há quartoze anos já cumpriu nove, tem um excelente comportamento e nunca teve o direito ao regime de progressão da pena respeitado. Eu pergunto, onde estão os grupos de Direitos Humanos que pelo que me consta nunca tiveram aqui? Perguntar não ofende.

Espero que não fique muito mais tempo nesse lugar, mas se ficar estarei sempre que possível escrevendo as minhas reflexões do cárcere. Uma pena não poder estar com vocês para exercer a dialética do debate, mas se um dia me soltarem poderemos refletir e lutar por uma PM desmilitarizada e melhor para todos.

Hoje finalizo com um trecho de Raul Seixas que nos obriga ir à luta.

“Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes esperando a morte chegar…”