fevereiro 11, 2011

O MENINO DO LIXO – histórias de uma infância invisível

                                                                                          por Maria de Lourdes da Silva*

                                                        Na madrugada de 30 de julho, Carlos José da Silva Santos 12, dormia no lixão de Maceió quando foi atropelado por um  trator  e morreu na hora. Segundo familiares do garoto, ele teria trabalhado a noite inteira catando lixo, à revelia dos pais, e não conseguiu voltar para casa por causa do cansaço. O motorista do trator informou em depoimento que o local não possuía iluminação e que o garoto estava coberto por papelões. A prefeitura alega que o acidente foi uma fatalidade.*2
A solidão da noite inspira-me desejos, sonhos, visões. Quando chove frio e forte na madrugada sombria, o cheiro da terra sobe mais quente e doce como uma rosa vermelha ou uma pitanga madura.  A solidão da noite me diz segredos, cochicha brilhos de lua nova em meus ouvidos.  As gotas de orvalho cheiram meus lábios e respingam nos seios fartos. Lá fora, na rua, o carro do lixo passa recolhendo os restos, os despojos do dia; jogamos na terra nosso desperdício, nossa vaidade, em Goiânia jogaram o césio 137, mas um índio já avisou sobre acabar com as árvores, animais, ar, água, terra, e aí é que os ditos “civilizados” perceberão que dinheiro não se come!
A solidão da noite vem acompanhada de uma cadela e um gato preto.  A cadela se esconde embaixo da cama quando ouve o estrondo de fogos de artifício que alguém solta comemorando o prêmio na loteria. O gato preto, que a vizinha chama de Alicio (por causa da sogra dela) passeia esguio e elegante sobre o muro, como um felino egípcio.  O caminhão da coleta de lixo passa às 4 horas da manhã.  Chove.  Os garis chovem.  Chove lixo. Chove ácido em alguns lugares do planeta.  Chove nos garis.   A água escorre pelos seus corpos suados e sujos, misturando-se e ensopando sua roupa azul, descendo em pequenas gotas que dançam no ar e caem no asfalto negro e úmido como um sangue pisado, um corte, uma ferida aberta, o tempo todo...
Um menino foi atropelado e esmagado por um trator enquanto dormia num lixão de uma das nossas cidades grandes.  O trator passou por cima do garoto dorminquanto dormia num lixdo..hoco e sonhador - sonhava com uma linda floresta, cheia de animais selvagens, e ele na copa das árvores, contemplando a paisagem – que agora dorme e descansa do seu cansaço precoce para sempre. Espero que ele não tenha acordado na hora, ficou lá na floresta admirando araras azuis e hipopótamos, preso no espaço-tempo psíquico da alegria, do prazer e da felicidade.  Seu corpo virou lama, ali no monturo, misturado aos plásticos, aos restos de comida, aos eletrodomésticos gastos e corroídos que haviam sido tocados fora.  Misturou-se ao papel higiênico e seus resíduos, virou lama, virou lixo.  
Na invisibilidade de sua pequena vida talvez se sentisse um lixo, um lixo humano, nascido, crescido e criado no meio de um lixão, dormia e acordava ali, nascera no lixão, viveu lá até morrer.  Seus brinquedos, catava-os  enquanto procurava comida em meio aos sacos, um caminhão amarelo sem as rodas traseiras, uma bicicleta incompleta, bolas furadas, um carro de corrida vermelho, estilo Ferrari, com as pilhas estouradas, o controle nem estava por perto.  Pipas, nunca!
A solidão da noite sombria insiste em sussurrar lembranças ao meu coração – seu cheiro em si, o da terra, que sobe cálido e quente; o cheiro da chuva grossa, pesada, barulhenta, invasiva caindo cinzenta e forte no telhado da casa, enquanto gira a roda da vida.  A chuva cai de açoite, fazendo exalar o cheiro das flores - as flores não usam perfume, a não ser o próprio - arrancando-lhes o perfume como quem toma a virgindade de uma mulher agressivamente.  A solidão da noite me lembra que o menino foi semeado, virou flor e agora é uma  lembrança de cheiro de fruta vermelha no coração de sua mãe, lá no lixão.
Até quando isto vai acontecer em minha pátria?  hum milhão de reais não devolverá a vida de Carlos José, nem um minuto sequer de seu fôlego de vida, nem um segundo do seu último olhar sob as rodas do trator.  A solidão da noite sombria me fala de funestas negligências do poder; afinal, é tão bom voltar para casa depois de um longo dia de trabalho  (qual trabalho?) e poder tomar um banho de piscina no aconchego do lar! não importa quantos Carlos Josés da vida ficaram tão cansados de catar lixo que nem aguentaram voltar pra casa, dormiram embaixo do papelão no meio do lixão e foram esmagados pelo trator; não importa quantas crianças chupam laranja podre, dormem coberta por insetos e suas larvas, não importa que não tenham onde dormir, a negligência é funcional ao desejo de luxo e luxúria dos negligentes.Até quando isto vai acontecer em minha pátria?
*Maria de Lourdes da Silva é licenciada em Filosofia e acadêmica de Direito

              *2 - http://www.fnpeti.org.br/destaque/mpt-pede-indenizacao-por-morte-de-crianca-no-lixao-de-maceio/











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